O contrabaixista é considerado, pela maior parte do público, ainda que inconscientemente, como sendo “aquele sujeito lá no fundo do palco”. Simpático, porém secundário. Muitos contrabaixistas já se queixaram dessa idéia pré-concebida. E, de fato, essa imagem está bastante longe da realidade no jazz moderno. Como veremos, o papel do contrabaixo é bem mais complexo.
Nos primórdios do jazz a função de executar a voz grave da trama harmônica e polifônica era executada por um instrumento de sopro: a tuba. Essa tradição permaneceu por algum tempo, mesmo após a emergência do contrabaixo; até meados dos anos 30 ainda havia contrabaixistas que tocavam também a tuba.
O fato de, diferentemente do que acontece na música clássica, o contrabaixo ser sistematicamente tocado no jazz em pizzicato (isto é, dedilhado, quando na realidade o instrumento foi concebido originalmente para ser tocado com arco) tem uma origem histórica documentada. Certo dia, em 1911, Bill Johnson, que tocava contrabaixo (com arco) na Original Creole Jazz Band, teve o arco quebrado. Não tendo outro à mão, Bill tratou de tocar dedilhando as cordas com os dedos da mão direita. O resultado agradou tanto que desde então (quase) nunca mais se usou o arco para tocar esse instrumento. Na verdade, é provável que, mais cedo ou mais tarde, o contrabaixo começasse a ser tocado com os dedos - isso por causa da função estrutural que ele executa dentro do conjunto de jazz. E aqui, existem dois aspectos que merecem ser discutidos.
Primeiro, e mais óbvio, o contrabaixo tem a função de fornecer a base harmônica da música. Na harmonia tonal, é preciso que um instrumento se encarregue de fornecer a nota fundamental dos acordes. Nesse sentido, o contrabaixo do conjunto de jazz preenche uma função análoga à que desempenha na orquestra ocidental clássica. Sob esse aspecto, portanto, o contrabaixo poderia ser tocado com arco. Mas, em segundo lugar - e este é um aspecto próprio ao jazz - o contrabaixo está incumbido de escandir, isto é, subdividir, o ritmo básico. Isso reduz a trivialidade da batida (beat) simples, embora seja importante que o beat continue perceptível, pelo menos implicitamente. Para isso, em vez de simplesmente emitir as notas fundamentais dos acordes nos momentos exatos, o contrabaixo descreve um fraseado contínuo, caprichoso, com subidas, descidas e saltos, sempre orbitando os centros tonais da música. Essa pulsação às vezes lembra o caminhar relaxado de uma pessoa, daí o termo walking bass. Para executar essa função, o contrabaixo dedilhado é infinitamente mais adequado do que o contrabaixo tocado com arco. Na verdade, o contrabaixo tem um papel importantíssimo no estabelecimento do swing da música, tanto quanto a bateria. Ele contribui para a maleabilidade, a elasticidade rítmica que caracteriza o swing.
Assim como a guitarra jazzística moderna se inicia com Charlie Christian, o contrabaixo se inicia com Jimmy Blanton, que tocou com Duke Ellington e faleceu aos 23 anos. A “segunda geração” de contrabaixistas (anos 40 e 50) inclui os instrumentistas que consolidaram o lugar do instrumento entro do jazz moderno: Oscar Pettiford, Ray Brown, Milt Hinton (apelidado “The Judge”, o juiz) e o genial e turbulento Charles Mingus. Além da profunda renovação estética proposta por Mingus, com ele o contrabaixo torna-se um instrumento capaz assumir o primeiro plano, liderar conjuntos e guiar o discurso musical de um grupo. Outros contrabaixistas importantes dessa geração foram Percy Heath (integrante do Modern Jazz Quartet), Eddie Safranski (associado ao jazz West Coast) e Paul Chambers (que tocou no grupo de Miles Davis nos anos 50).
Atuando com destaque nos anos 60 temos, entre muitos outros, Jimmy Garrison (do quarteto de John Coltrane), Reggie Workman (que também tocou com John Coltrane), Scott LaFaro (que tocou com Bill Evans e foi imensamente influente, apesar de ter morrido jovem), David Izenzon (que tocou com Ornette Coleman) e Niels-Henning Orsted Pedersen. Entre os músicos que despontaram nos anos 60 encontramos vários que ainda estão muito ativos na cena jazzística atual: Charlie Haden (que participou da criação do free jazz), Ron Carter (que tocou no grupo de Miles Davis de 1963 a 1968 e participou de cerca de 3000 gravações durante a carreira), Dave Holland (descoberto por Miles Davis na época de In a Silent Way e Bitches Brew), Gary Peacock (integrante do Standards Trio de Keith Jarrett), Eddie Gomez (que tocou com Bill Evans e Chick Corea na fase mais mainstream deste) e Steve Swallow (que tocou com Gary Burton e teve uma associação estreita com Carla Bley).
Nos anos 70, despontam instrumentistas que estariam associados ao jazz fusion, como Stanley Clarke, Alphonso Johnson e Miroslav Vitous. Na era da fusion, começou a predominar o contrabaixo elétrico, mas isso não impediu que houvesse músicos capazes de executar bem tanto o instrumento acústico (chamado carinhosamente de upright, o “verticalzão”) quanto o elétrico. Um exemplo destacado de virtuosismo a toda prova, tanto no registro “plugado” como no “desplugado”, é John Patitucci, que surgiu nos anos 80 e tocou na Elektric Band e na Akoustic Band de Chick Corea. Na atualidade também estão surgindo excelentes contrabaixistas jovens, como Christian McBride, que aderem decididamente ao acústico e não pertecem à fusion, mas nem por isso deixam de fazer um jazz moderno.
Em entrevista a Don Williamson, no ano de 2000, para um website de jazz, o contrabaixista Ron Carter afirma: “Penso que meu trabalho é encontrar a nota que fará o solista não tocar o que que ele tocaria na sua sala de estar. Ou então, eu gosto de criar um ritmo que fará a banda tomar uma direção diferente. É isso o que eu gosto de fazer”. O entrevistador intervém: “Você já disse que o baixo é o ponto focal de um grupo”. Ao que Carter responde: “Sim, o baixista age como o quarterback”. Quando o entrevistador provoca: “Porém o baixo está usualmente no background...”, Carter responde: “Sim, mas se o baixista consegue saber como comandar, ele fica no fundo apenas na percepção das pessoas. A música toma a direção que o baixista estipula. Isso é que é realmente importante”. Eis aí uma verdadeira “declaração de independência” do contrabaixo moderno no jazz, por um de seus maiores expoentes. As coisas mudaram muito desde o “umpa-pá” da tuba no início do século...
(V.A. Bezerra, 2001)
Nos primórdios do jazz a função de executar a voz grave da trama harmônica e polifônica era executada por um instrumento de sopro: a tuba. Essa tradição permaneceu por algum tempo, mesmo após a emergência do contrabaixo; até meados dos anos 30 ainda havia contrabaixistas que tocavam também a tuba.
O fato de, diferentemente do que acontece na música clássica, o contrabaixo ser sistematicamente tocado no jazz em pizzicato (isto é, dedilhado, quando na realidade o instrumento foi concebido originalmente para ser tocado com arco) tem uma origem histórica documentada. Certo dia, em 1911, Bill Johnson, que tocava contrabaixo (com arco) na Original Creole Jazz Band, teve o arco quebrado. Não tendo outro à mão, Bill tratou de tocar dedilhando as cordas com os dedos da mão direita. O resultado agradou tanto que desde então (quase) nunca mais se usou o arco para tocar esse instrumento. Na verdade, é provável que, mais cedo ou mais tarde, o contrabaixo começasse a ser tocado com os dedos - isso por causa da função estrutural que ele executa dentro do conjunto de jazz. E aqui, existem dois aspectos que merecem ser discutidos.
Primeiro, e mais óbvio, o contrabaixo tem a função de fornecer a base harmônica da música. Na harmonia tonal, é preciso que um instrumento se encarregue de fornecer a nota fundamental dos acordes. Nesse sentido, o contrabaixo do conjunto de jazz preenche uma função análoga à que desempenha na orquestra ocidental clássica. Sob esse aspecto, portanto, o contrabaixo poderia ser tocado com arco. Mas, em segundo lugar - e este é um aspecto próprio ao jazz - o contrabaixo está incumbido de escandir, isto é, subdividir, o ritmo básico. Isso reduz a trivialidade da batida (beat) simples, embora seja importante que o beat continue perceptível, pelo menos implicitamente. Para isso, em vez de simplesmente emitir as notas fundamentais dos acordes nos momentos exatos, o contrabaixo descreve um fraseado contínuo, caprichoso, com subidas, descidas e saltos, sempre orbitando os centros tonais da música. Essa pulsação às vezes lembra o caminhar relaxado de uma pessoa, daí o termo walking bass. Para executar essa função, o contrabaixo dedilhado é infinitamente mais adequado do que o contrabaixo tocado com arco. Na verdade, o contrabaixo tem um papel importantíssimo no estabelecimento do swing da música, tanto quanto a bateria. Ele contribui para a maleabilidade, a elasticidade rítmica que caracteriza o swing.
Assim como a guitarra jazzística moderna se inicia com Charlie Christian, o contrabaixo se inicia com Jimmy Blanton, que tocou com Duke Ellington e faleceu aos 23 anos. A “segunda geração” de contrabaixistas (anos 40 e 50) inclui os instrumentistas que consolidaram o lugar do instrumento entro do jazz moderno: Oscar Pettiford, Ray Brown, Milt Hinton (apelidado “The Judge”, o juiz) e o genial e turbulento Charles Mingus. Além da profunda renovação estética proposta por Mingus, com ele o contrabaixo torna-se um instrumento capaz assumir o primeiro plano, liderar conjuntos e guiar o discurso musical de um grupo. Outros contrabaixistas importantes dessa geração foram Percy Heath (integrante do Modern Jazz Quartet), Eddie Safranski (associado ao jazz West Coast) e Paul Chambers (que tocou no grupo de Miles Davis nos anos 50).
Atuando com destaque nos anos 60 temos, entre muitos outros, Jimmy Garrison (do quarteto de John Coltrane), Reggie Workman (que também tocou com John Coltrane), Scott LaFaro (que tocou com Bill Evans e foi imensamente influente, apesar de ter morrido jovem), David Izenzon (que tocou com Ornette Coleman) e Niels-Henning Orsted Pedersen. Entre os músicos que despontaram nos anos 60 encontramos vários que ainda estão muito ativos na cena jazzística atual: Charlie Haden (que participou da criação do free jazz), Ron Carter (que tocou no grupo de Miles Davis de 1963 a 1968 e participou de cerca de 3000 gravações durante a carreira), Dave Holland (descoberto por Miles Davis na época de In a Silent Way e Bitches Brew), Gary Peacock (integrante do Standards Trio de Keith Jarrett), Eddie Gomez (que tocou com Bill Evans e Chick Corea na fase mais mainstream deste) e Steve Swallow (que tocou com Gary Burton e teve uma associação estreita com Carla Bley).
Nos anos 70, despontam instrumentistas que estariam associados ao jazz fusion, como Stanley Clarke, Alphonso Johnson e Miroslav Vitous. Na era da fusion, começou a predominar o contrabaixo elétrico, mas isso não impediu que houvesse músicos capazes de executar bem tanto o instrumento acústico (chamado carinhosamente de upright, o “verticalzão”) quanto o elétrico. Um exemplo destacado de virtuosismo a toda prova, tanto no registro “plugado” como no “desplugado”, é John Patitucci, que surgiu nos anos 80 e tocou na Elektric Band e na Akoustic Band de Chick Corea. Na atualidade também estão surgindo excelentes contrabaixistas jovens, como Christian McBride, que aderem decididamente ao acústico e não pertecem à fusion, mas nem por isso deixam de fazer um jazz moderno.
Em entrevista a Don Williamson, no ano de 2000, para um website de jazz, o contrabaixista Ron Carter afirma: “Penso que meu trabalho é encontrar a nota que fará o solista não tocar o que que ele tocaria na sua sala de estar. Ou então, eu gosto de criar um ritmo que fará a banda tomar uma direção diferente. É isso o que eu gosto de fazer”. O entrevistador intervém: “Você já disse que o baixo é o ponto focal de um grupo”. Ao que Carter responde: “Sim, o baixista age como o quarterback”. Quando o entrevistador provoca: “Porém o baixo está usualmente no background...”, Carter responde: “Sim, mas se o baixista consegue saber como comandar, ele fica no fundo apenas na percepção das pessoas. A música toma a direção que o baixista estipula. Isso é que é realmente importante”. Eis aí uma verdadeira “declaração de independência” do contrabaixo moderno no jazz, por um de seus maiores expoentes. As coisas mudaram muito desde o “umpa-pá” da tuba no início do século...
(V.A. Bezerra, 2001)
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